Meu Estúdio Maravilhoso
A Borboleta da Madame (Le Papillon de Madame)
Sexta-feira, Abril 22, 2022

Madame Matilde Chenille, de quarenta e cinco anos, nascera numa família francesa de comerciantes e proprietários de terras, e era uma pessoa abastada. Ela fora casada com o conde Marcel Chenille, trinta e cinco anos mais velho do que ela, o qual morreu quando ela tinha apenas vinte e cinco anos, nove anos depois do seu casamento arranjado. Matilde era uma mulher linda, socialmente muito ativa e, depois de passado o luto pelo seu marido, contava com muitos pretendentes. Contudo, um acidente de carruagem deixou-a limitada a uma cama e cadeira de rodas aos trinta e cinco anos de idade. Familiares, amigos e conhecidos, que inicialmente se haviam mostrado solidários com a sua situação, começaram a se afastar, e até mesmo seu filho Jacques raramente a visitava.

Agora Madame Matilde Chenille vivia sozinha no seu suntuoso castelo, tendo como única companhia um par de funcionários, a assistência de sua jovem criada Louise, de quem dependia, e o botânico de sessenta anos, Bernard Dubois. Ali ela desfrutava da sua coleção de pinturas impressionistas contemporâneas, e se dedicava a fazer tapeçarias e ler seus amados livros. Ela se deleitava principalmente em ler autobiografias de pessoas que passaram por sofrimentos e superaram; principalmente os escritos de alguns considerados místicos católicos. Esses escritores se tornaram os companheiros encadernados em couro e linho mais apreciados por Matilde e os conselheiros que a encorajaram a compartilhar sua própria experiência num jornal de “pensées” — palavra francesa para “pensamentos”.

Certa manhã, Matilde estava escrevendo uma página desses pensamentos quando escutou um assobio familiar no corredor e depois uma batida na porta da sua biblioteca.

—Pode entrar, Bernard.

Bonjour, Madame. Dormiu bem?

Merci, Bernard. Sim, dormi.

Com dificuldade, Madame Matilde Chenille se endireitou na cadeira de rodas para receber a bandeja com um bule de café e um croissant quente que o afável homem de barba grisalha colocou no seu colo.

—Ah e chegou uma carta para você, de Paris.

Matilde levantou os olhos.

—É a letra de Jacques — disse abrindo o envelope. Mas seu semblante logo entristeceu quando começou a ler.

—Quer que eu saia, Madame?

N-non.

Seguiram-se alguns minutos de silêncio sombrio.

—O meu filho Jacques … está … aa, doente, — disse ela por fim.

—Lamento muito, Madame, muito mesmo. Tem alguma coisa que eu possa fazer? … Outro croissant?

—Não se incomode mais, Bernard. Louise vai retomar a tarefa do meu petit dejeuner amanhã de manhã.

—Não é incômodo nenhum, Madame, pelo contrário. Seria um prazer ser útil para a senhora todas as manhãs.

—Ah, mas o seu importante trabalho lhe deixaria pouco tempo para tal galanteio — respondeu Matilde, conseguindo dar um sorriso.

—Eu não vejo esse serviço como um galanteio nem insignificante, Madame — disse o cavalheiro, acertando o nó da gravata. Fez uma reverência e preparou-se para ir embora.

Matilde pigarreou e disse em tom impessoal:

—En-então, como está o seu mundo … aa, o seu trabalho, estes dias professor Dubois?

—O meu trabalho está indo mais devagar, com o meu… aa … vigor natural diminuindo, Madame, mas o meu mundo naturalista da flora, fauna, e todas as criaturas grandes e pequenas nunca deixa de me maravilhar.

—Maravilhar… disse Matilde melancolicamente. Deu uma mordida no croissant, engoliu e continuou. “Uma admiração infantil e inocente que precisamos conservar, para não perecermos por dentro.”

—Bem verdade — disse Bernard — e uma das muitas virtudes que a Madame tem admiravelmente acalentado.

—Admiravelmente? — Seu semblante pálido ficou rubro, e ela virou-se para a janela. — Que mais posso eu fazer além de valorizar a beleza que me rodeia?

—É claro, Madame. Mas você alcançou rapidamente um estado de mente que muita gente luta uma vida inteira para alcançar. Muitos nas suas … aa … circunstâncias apenas ficam prostrados numa cama de remorso, autocomiseração e até amargura.

—Pode crer que fui tentada a fazer isso muitas vezes — sussurrou Matilde.

—Mas pela graça do bom Deus não cedi à tentação — disse ela com determinação. “O brilhante Fénelon1 escreveu que auto comiseração e desencorajamento não são o fruto da humildade, mas sim do orgulho. Brotam de um amor secreto pela nossa própria excelência ferida. Contudo, eu ainda me maravilho com ... ah não importa.

—Ainda se maravilha com o quê?

—Pela forma como Deus, no seu infinito desvelo e sabedoria, permite que eu passe por tal retorcimento de corpo, mente e espírito, contudo sabendo que apesar de todas as manifestações exteriores, eu emergiria um ser muito mais feliz. Qual borboleta emergindo de um casulo. … Oh, pardonne-moi, devo estar deixando você entediado com minhas reflexões.

—De maneira alguma, Madame. T-tem mais alguma coisa que eu possa fazer ou trazer para a senhora?

Rien, Bernard. Você já faz mais do que o suficiente.… Non, espere. Logo vai ser a época das borboletas aqui em Giverny. Claude … quero dizer, Monsieur Monet deve sem dúvida devotar suas cores mais vibrantes e pinceladas a esse acontecimento. Você sabe como eu adoro borboletas.

Tendo convivido por mais de dez anos com Madame Chenille, o professor Bernard Dubois sorriu, pois sabia que avistar uma borboleta numa flor deixava aquela dama em um êxtase quase pueril. Quer chovesse quer fizesse sol, ele empurrava Madame Chenille em sua cadeira de rodas até o jardim para a esclarecer sobre as maravilhas da natureza. E no final da primavera, quando as borboletas eclodiam de seus casulos, ficavam os dois sentados, enquanto ela admirava extasiada os bandos de borboletas esvoaçarem por cima dos seus canteiros de flores.

Eventualmente (quando Bernard ficou um pouco mais íntimo dela), ele a apelidou de “papillon,” que em francês quer dizer borboleta! E nessa manhã, ele finalmente reuniu coragem suficiente para dizer a madame que alguém a amava.

—E essa pessoa sempre o fez … — disse ele — à distância.

Matilde parecia impassível. No final das contas, ela tinha recebido a atenção de muitos pretendentes quando era mais nova, mas...

—Até mesmo agora? Incapacitada?

—C-como Deus, eu suponho — acrescentou Bernard.

—Mas Deus não me ama à distância — perguntou Matilde, apertando o peito. — Ele sempre me amou bem aqui. Quem é esse ‘alguém’ a quem você se refere? É… aa … um ser humano de carne e osso?

Bernard acenou afirmativamente. Matilde olhou em seus olhos e sorriu. Não disse nada, então Bernard continuou hesitante.

—E aparentemente … esse ser humano de carne osso … só pode esperar que seu amor seja apenas uma fração do que bate no seu coração.

—Poético, Bernard. Eu nunca esperaria isso de … desculpe, nos conhecemos há tantos anos, mas qual você disse que é a sua profissão?

—Naturalista. Pelo menos é o que fui oficialmente denominado.

—E o que você se denominaria?

—Um observador entusiasmado da natureza, senhora. A obra do Criador dela nunca deixou de me maravilhar — inclusive meu próprio corpo.

Bernard levantou as mãos contra a luz que vinha da janela. “Até o capilar mais minúsculo …

—Você — interrompeu Matilde com ar de que tinha pensado em algo.

—Eu? O quê?

—Você, Bernard! Tal como Deus você sempre esteve bem aqui.

Ele baixou e acenou com a cabeça esbranquiçada.

Donc, sirva um conhaque e sente-se, meu leal São Bernardo!

Bernard riu.

—Merci, Madame. Isso não é o que colocam em volta do pescoço desses cachorros nas travessias dos Alpes?

—É o que diz a tradição — continuou Matilde, enquanto Bernard, agradecido, se servia do liquido âmbar do decantador de cristal. — Mas eu estava comparando você ao seu venerado xará São Bernard de Clairvaux!2 De qualquer forma ... sua, aa … sua confissão me deu a coragem para lhe fazer um pedido. Você sabe que o chalé do guarda de caça que fica na extremidade da minha propriedade está vazio há vários anos.

Oui, Madame. O sr. Fantin ficou doente de repente. Assuntos de família requeriam sua presença. ... Ou pelo menos é o que fiquei sabendo — acrescentou ele, vendo o sorriso triste de Matilde.

—Isso é o que ele queria que soubéssemos — disse ela. —Especulação social e uma pequena, mas necessária, redução do seu salário, devido à minha incapacidade, consolidaram sua decisão de parar de trabalhar para mim. Eu teria feito tudo ao meu alcance, apesar da situação difícil em que me encontrava, para ele continuar.

—Uma triste perda, Madame. Sinto muito.

—Não fique triste. Não é uma perda pequena em comparação com o que vou ganhar se você aceitar.

—Aceitar … aceitar o quê?

—Usar aquele chalé.

Bernard engasgou com a bebida.

—U-usar o…? Você quer dizer … morar nele?

Matilde fez que sim, e Bernard sentou-se olhando para o tapete enquanto ela continuava a falar. Ele estava morando com toda sua parafernália de análise, livros e manuscritos amontoados num atelier de dois cômodos em Vernon, uma cidade não muito distante do castelo de Madame Chenille.

—E você, claro, cuidaria do jardim? Um toque pessoal será muito melhor do que o trabalho descuidado de funcionários ocasionais.

—C-claro, Madame.

—E você pode continuar suas pesquisas de botânica e sei lá que mais … especialmente borboletas. Ah, isso me faz lembrar outra coisa. Você faria a amabilidade de conseguir para mim um casulo da borboleta que você considerar a mais majestosa?

—A mais majestosa? Eu diria que é a borboleta monarca, Madame.

Bien, gostaria de vê-la desenvolver até à sua glória. Quero observá-la dia após dia, até momento após momento, até eclodir do casulo e emergir em toda a sua beleza antes de migrar.

—Muito bem dito, Madame … muito bem dito. Faremos isso, faremos isso.

Merci, Bernard.

—É mais do que um prazer, Madame. Na realidade, eu estou escrevendo uma tese sobre a borboleta monarca, e quando estiver terminada vou mandá-la para Antoine.

—Antoine?

—O meu editor, Antoine Chandler.”

Intéressant. Então, quando pode mudar para lá?

* * *

Apesar de se sentir perturbado por Madame Chenille ter se esquivado a reconhecer sua elaborada confissão de amor por ela, Bernard Dubois prontamente montou um laboratório, sala de estudo e biblioteca no chalé desocupado que ficava no final da propriedade dela. Contudo, algumas semanas depois, Matilde considerou o seu cuidado do jardim inferior ao do Sr. Fantin, apesar de que na opinião de Bernard o jardim não precisava de cuidados tão intensivos. Ele se considerava um “naturalista estudado”, e quando Matilde chamou atenção para o estado das rosas e redodendros, Bernard a lembrou de que Fantin era “apenas jardineiro”.

Felizmente, Bernard logo recebeu uma boa quantia de dinheiro advinda da venda do seu primeiro livro de botânica, e eles conseguiram contatar um jardineiro de verdade. Com isso a exuberância do jardim desabrochou.

E Bernard comprou para Madame Chenille uma grande crisálida sedosa dentro de um vidro.

Ela sabia que era uma questão de tempo até esta se transformar, mas entre escrever seu livro de pensées e trabalhar numa tapeçaria, as horas da noite eram marcadas de impaciência, e ela acordava frequentemente para olhar o casulo dormente em uma folha dentro do vidro que colocara em cima do seu criado mudo.

—Você tem a certeza que ela está viva, Monsieur Bernard? — perguntou ela uma manhã quando ele passou pela sua sala.

—Claro que está, Madame. Não se preocupe. Só parece que está mumificada. Na realidade é um exemplar premiado — consigo ver isso pelo seu tamanho.

—Mas será que precisa de mais luz e ar?

Bernard abanou a cabeça.

—Comida ou água?

—Claro que não, Madame. É como esperar por uma panela ferver, ela nunca ferve enquanto você está olhando para ela. Permita-me ajudá-la a esquecer o casulo por um tempinho e levá-la para jantar no Le Moulin de Fourges esta noite.

—Eu? Jantar no Le Moulin de Fourges numa cadeira de rodas? Não vai ficar com vergonha?

—De maneira alguma. É uma honra, Madame. Vou pedir para Louise a vestir e chamarei uma carruagem quando for a hora.

* * *

—Mas diga-me uma coisa, Bernard, por que está tão quieto? Perguntou Matilde logo que os dois estavam sentados na mesa do restaurante e os aperitivos haviam chegado.

—O que disse, Madame?” perguntou Bernard, absorto com o cardápio. — A noite? É verdade, quase não tem brisa.”

Non, a borboleta. Por quê?

—É o que ela escolheu fazer.

—Quem escolheu o quê? Deus?

—Indiretamente. A lagarta escolheu se enrolar de forma que, para todos os efeitos — e para todo o mundo — ela está morta. Umm … acho que eu vou querer le viande. E você?

—Acho que vou querer le poulet. Mas quando é que vai nascer?

—O quê? Le poulet?

Matilde gargalhou e rolou os olhos.

Non, Bernard. A borboleta.

—No tempo certo, no tempo certo. Se me permite a ousadia, Madame, quando voltarmos para casa, ocupe-se com os seus pensées. Têm sido um salva-vidas, não têm?

—Os meus escritos? Ah, oui. Eles são um grande consolo para mim.

—Mas igualmente importante, Madame, suas palavras estão se tornando um salva-vidas e um consolo para muitas pessoas, alegrando seus corações e dando-lhes esperança. Uma palavra falada a seu tempo, como é boa!3 A propósito, que colheita a Madame prefere?

—Acho que eu vou querer o Chateau Latour Grenache … mas como sabe que as minhas palavras fizeram isso para mais alguém além de você? Eu nunca escrevi para receber aplauso público, e não espero nenhum agora. Eu apenas tenho em mente leitores invisíveis, mas oh, tão necessitados.

Bernard sorriu e pegou a sua pasta.

—Uma parte desses leitores necessitados acabaram de se tornar visíveis. Com sua licença, eu a trouxe aqui para lhe mostrar isto …

Madame Chenille ficou de boca aberta.

—Um livro? “Os Pensées de M-Madame Papillon”?

—Um exemplar da primeira edição, Madame. Eu tomei a l-liberdade…

—Liberdade? Bernard! Você traiu a minha confiança de permitir que você, e somente você, lesse as minhas confissões!

—Monsieur Chandler ficou entusiasmadíssimo, Madame. Leu partes dele para a esposa e filha e …

—Não posso. Não quero …”

—… e uma jovem sobrinha deles, que está morrendo de tuberculose pulmonar, leu-os e recobrou a esperança. Peço perdão, Madame, mas não suportei vê-la esconder a sua luz debaixo do alqueire.4

—E-eu não posso. Não devo!

—O quê, Madame? Esconder a sua luz debaixo do alqueire?

Oui … aa … non, quero dizer … — disse Matilde, baixando a voz, quando o garçom trouxe o vinho e o serviu.

Bernard sorriu maliciosamente levantando o copo para fazer um brinde.

—Acho que será reconfortante saber que estará usando um pseudônimo.

—Ah Bernard … — sussurrou Matilde, devolvendo o sorriso dele, e levantando a taça. -— Ao meu querido e leal santo.

E a partir daquele dia, a luz de Madame Matilde Chenille foi colocada no “candelabro” da editora Chandler — e o sucesso do seu livro levou Antoine Chandler a pedir uma sequência. Contudo, apesar de Bernard a reassegurar que permaneceria no anonimato, Matilde ficou relutante de se aproveitar demasiadamente da sua conquista.

—Vamos esperar — disse ela diretamente para Bernard quando este insistiu com ela uma manhã durante o café da manhã. — Monsieur Chandler terá a sua sequência no momento certo. Não posso lhe dizer quando … mas para ser franca, eu tenho poucas ou nenhumas ideias.

—Ah — disse Bernard. — Elas virão. Elas virão.

—É o que você diz, mas eu não posso inventá-las a meu bel-prazer.

—Claro, Madame. Terei isto em mente e nas minhas orações. Ah, e a propósito, sugeri que o frontispício do livro fosse a gravura de uma de suas lindas tapeçarias.

Oui? E qual?

—Exatamente a que está fazendo no momento.

* * *

—Como acha que está ficando, Louise?

A criada de Matilde Chenille hesitou e parecia surpresa.

—A sua tapeçaria, senhora?

Oui. É o que você está vendo, não é?

—A-a … oui.

—Então, o que você acha?

—Aa … bem, eu não sei, senhora. Acho que não posso dizer nada … eu não sou artística nem nada do gênero.

—Não tenha receio de dizer o que acha, Louise.

—Olha, na minha opinião, parece que as linhas precisam ser aparadas. É difícil perceber o que representa.

—Representa? Não está claro que é uma borboleta, Louise? Uma monarca, a mais nobre da espécie.

—Aa … oui, Madame. Agora que você mencionou, eu consigo mais ou menos perceber a forma. É só que todos esses fios não ajudam.

—Fios? Ah que boba que eu sou. Pensei que você estava vendo a parte da frente. Vire do outro lado.

A criada virou a tapeçaria e prendeu a respiração.

—Madame, está linda. Tão detalhada, e a cor é exquisement vibrante. Como conseguiu fazer as asas parecerem tão, umm … transparentes?

Madame Chenille encolheu os ombros.

—Talvez a combinação de fios ambar e prateados?

—Mas Madame, é muito estranho ver o aspeto da tapeçaria quando se olha do lado errado.

—Uma observação muito sábia — disse Matilde.

Au contraire, Madame, porque eu me acho muito boba. Apesar de que faço um pouco de ponto de cruz e bordado devido à insistência da minha mãe, sei muito pouco ou nada de tapeçaria.

—Ah, mas você me deu muito hoje, Louise.

—Apenas um elogio merecido, Madame”

—Apesar do seu elogio ser muito bem recebido — disse Matilde — mais valioso do que isso é a lição de vida que você me deu e que posso incluir no meu novo livro de pensées. Está quase terminado, mas tenho sentido muito a necessidade de uma reflexão conclusiva. Obrigada. Agora já tenho o que colocar.

A criada parecia perplexa.

—A senhora me agradece? Mas o que é que eu fiz?

—Você não disse “É estranho como é incompreensível quando se olha do lado errado”?

—Disse sim, Madame. me referindo à tapeçaria.

Oui. A tapeçaria, assim como a vida é uma questão de percepção. Um dia, quando a virmos do outro lado, perceberemos … tudo bem. Merci, Louise, e bonjour.”

A criada fez uma cortesia.

Bonjour, Madame.

* * *

Amor e primavera rejuvenesciam os passos de Bernard, que entrou com grande leveza na sala de Madame Chenille, assobiando uma melodia, enquanto Louise servia o café da manhã.

—Você parece excepcionalmente feliz — disse Matilde durante a conversa trivial, café e croissants.

—Como posso não estar feliz, ma papillon? Os pássaros estão cantando, os sinos tocando e a primavera jogando nossas preocupações para longe! E ainda por cima você quase terminou a sequência do seu livro.

—Verdade, querido Bernard — graças a você e à Louise aqui. Mas tenho notícias tristes: uma situação que me preocupa mais neste momento. Vamos, termine o seu café. E, mesmo podendo parecer indiscreto, peço que me leve até o meu quarto. Quero lhe mostrar algo.

Bernard empurrou Matilde até o quarto, e ela apontou para o seu criado mudo. Ali, em cima de uma toalhinha de renda branca, cambaleava uma grande borboleta Monarca. Havia saído do casulo, mas suas grandes asas estavam desbotadas e sem vida, e pareciam ser um peso para a criatura, que não podia usá-las para voar. Bernard ficou perplexo.

—Como você sabe —disse Matilde — tenho observado ansiosamente o casulo à medida que a primavera se aproxima, e fiquei felicíssima quando a vi finalmente começar a sair dele. Mas em poucos momentos logo vi que tinha algo errado.

—Poucos momentos do quê— Madame?

—Dela sair do casulo. Estava tendo dificuldade, uum … para nascer.

—Isso sempre acontece—disse Bernard. — É uma luta.

—Era o que parecia — disse Matilde. — Ela empurrava e se espremia, mas parecia fazer muito pouco progresso. Então eu ajudei-a um pouco.

— É mesmo? Como?

—Ah, percebi que tinha um fio muito fino obstruindo a abertura do casulo. Então peguei uma tesoura bem pequena e, com a maior das delicadezas, cortei esse fio. Imediatamente o casulo se abriu e a borboleta rastejou para fora sem mais dificuldade.

Bernard soltou um grunhido e puxou a barba.

—Devo admitir — continuou Matilde — que me parabenizei pelo sucesso da minha experiência, imaginando que havia salvado a vida da pobrezinha. Mas ao ver isto, cheguei à conclusão que ela já devia estar doente e impossibilitada de sair, muito menos de voar.

Bernard deu um grunhido de novo e limpou a garganta. Falou com gentileza, mas firmemente.

—Ela não estava doente, ma papillon.

—Não estava?

—Não. Perdoe-me por lhe dizer isso, mas devido à sua bem intencionada, mas equivocada bondade, em vez de ter até seis semanas de liberdade, agora a borboleta terá apenas alguns dias de uma existência miserável e doentia.

O que você quer dizer com a minha ‘equivocada bondade’?

—É que justo esse esforço de empurrar e essa luta é que são necessários para levar o fluido da vida para as veias das asas da borboleta. Encurtar esse processo deixou suas asas descoloridas e sem vida.

Matilde ficou em silêncio por alguns momentos, olhando o esforço da pobre criatura.

—Estou vendo — disse por fim baixinho. —Merci, Monsieur Dubois, pode ir.

No dia seguinte, Matilde pediu para Bernard vir de novo tomar o café da manhã com ela.

—Tenho agradecido a ela por nunca ter cortado a corda que obstruía a minha entrada para esta nova vida — disse ela, depois de Louise ter servido na frente deles um bule de café e um prato de crepes recheados de morango com natas.

—Agradecido a quem?

—Nossa santa Mãe Maria. Se ela tivesse feito isso eu não teria podido viver a vida ao máximo.

—E você acha que está fazendo isso, mesmo com as limitações do seu presente estado?

—Oui. O venerável Fénelon tinha razão — é a vitalidade da vida interior, meu querido Bernard.

—Isso é óbvio, ma papillon. Você tem tanto para dar.

Merci. Apesar de que... — os olhos de Matilde ficaram embaçados, e sua voz distante. —- Receio que eu tenha feito isso com o meu filho Jacques.

—Feito o quê?

—Cortado ternamente essa corda. Eu o induzi ao erro. Uma bondade bem intencionada, mas equivocada, você sabe. As vezes que não esperei dele tanto quando deveria, encobrindo seus fracassos, pagando suas dívidas e até fiança, levou à sua devassidão. Graças a Deus que finalmente casou, apesar de que agora, com essa aflição…

—Não se torture por causa disso, ma petite papillon. Basta estar agradecida por o bom Deus não ter mimado você desse jeito.

—Ah, Ele me mimou bastante, Bernard. Mas ao mesmo tempo eu aprendi uma lição com a borboleta. Apesar de eu haver me punido pelo fato de mimar o meu filho, tenho me alegrado pelo fato deles, Deus a nossa Santa Mãe, não terem lidado comigo ou com ele desta forma.

Bernard fez uma pausa antes de responder, meneando a cabeça enquanto refletia.

—Entendo… você está feliz por Deus não ter lidado com você como, perdoe minha alusão bastante rude, une b-batarde!

Bernard ficou aliviado ao ver Matilde jogar a cabeça para trás e rir.

—Pode colocar desse jeito. Mas Paulo disse que somos todos participantes!

—Então vai incluir isso no seu novo livro ‘Pensées d’un Cocon’?

—Vou sim. Só espero que a minha confissão seja útil para outros.

—Pode ter certeza, papillon. Você sofreu e aprendeu muito para beneficiar muitas almas.

Oui, Bernard, mas oro para que o meu filho entenda isso.

Felizmente, Jacques Chenille, que entretanto perdeu a esposa em favor das atenções de outro, por causa do seu estado debilitante, entendeu a confissão pública da sua mãe. Suas conquistas o trouxeram de volta para o lado dela e apressaram seu regresso à propriedade dos Chenille, onde ele habilmente concluiu os negócios de Matilde há muito negligenciados. Além disso, depois de exercer muita gentil persuasão, Bernad obteve a mão de Matilde em casamento e foi promovido do chalé do guarda de caça para o castelo e o quarto da sua borboleta.

“Assim as asas da nossa alma precisam das lutas e do esforço do conflito”, Madame Matilde Chenille-Dubois (sob o pseudônimo de Madame Papillon) escreveu no seu livro Pensées d’un Cocon. “Oferecer-lhe um escape apenas roubaria seu poder para ‘subir com asas como águia.…”

E, havendo suportado uma luta semelhante à da borboleta monarca, Matilde, assistida pela perspicácia para negócios de Jacques, vendeu o seu castelo e migrou para o sul junto com ele, o seu fiel ‘São Bernardo’ e a sua fiel Louise. Ali, na ilha de Martinique, no Caribe, eles passaram serenamente o resto dos seus dias.


Referências:

1 François Fénelon (1651—1715) era um arcebispo francês, teólogo e escritor. Suas ideias pouco ortodoxas sobre religião, política e educação lhe conquistaram a oposição da igreja e do estado; contudo, seus conceitos acadêmicos e obras literárias tiveram uma influência muito extensa na cultura francesa. (Trecho traduzido da Britannica.) (Ver também https://pt.wikipedia.org>wiki>François_Fénelon)

2 Bernard de Clairvaux (1090—1153) foi um monge cisterciense e místico, fundador e abade da Abadia de Clairvaux e um dos membros mais importantes do clero do seu tempo. (Trecho traduzido da Britannica.) (Ver também https://pt.wikipedia.org>wiki>Bernardo_de_Claraval)

3 Ver Provérbios 25:11.

4 Ver Mateus 5:15.

Autoria de Gilbert Fenton. Ilustrado por Jeremy. Design de Roy Evans.
Publicado pelo My Wonder Studio. Copyright © 2022 por A Família Internacional.
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Tagged: histórias infantis, adversidade